Como foi a sua primeira experiência como investigador num ensaio clínico? O que o motivou a fazer investigação?
Recordo muito bem o primeiro grande ensaio clínico em que participei. Foi o ensaio CAPRIE que viria a lançar o clopidogrel na prática clínica na área cardiovascular (cardiologia, neurologia e cirurgia vascular). Eu trabalhava na altura na UTIC – Arsénio Cordeiro do Hospital de Santa Maria e, em conjunto com o Dr. Armando Bordalo e Sá, seguimos meia centena de doentes que tinham sofrido um enfarte do miocárdio recente. Foi uma tarefa prolongada no tempo (com um follow-up de 3 anos) mas para mim muito recompensadora em 2 aspetos: por um lado verificar como os doentes portugueses são exemplares quando integram um ensaio clínico. Não tivemos um único dropout nem perdidos para follow-up e os doentes tinham uma aderência à medicação do ensaio muito próxima dos 100%. Por outro lado, quando o ensaio foi apresentado pela primeira vez em New Orleans, EUA, numa reunião do American Collegge of Cardiology, foi uma enorme honra sentir que tinha dado o meu contributo para o ensaio, ainda que muito modesto naturalmente.
Tendo presente a sua primeira experiência como investigador num ensaio clínico, conte-nos um pouco da evolução que tem vivido ao longo dos anos, pontos positivos e eventualmente menos positivos?
Depois do CAPRIE, participei em mais de 30 ensaios como co-investigador ou como investigador principal nos hospitais por onde passei. Posso dizer que participei em vários tipos de ensaios, com todos os desfechos possíveis: ensaios negativos, ensaios positivos, ensaios interrompidos prematuramente por benefício do fármaco em estudo ou por ausência desse benefício.
A título de ponto positivos, o rigor exigido no seguimento dos doentes dos ensaios, com o seguimento muito apertado dos respetivos protocolos, levou-me a extrapolar idêntico rigor no seguimento dos outros doentes não incluídos em ensaios. Uns e outros merecem dos seus médicos rigor na sua abordagem, quer diagnóstica quer terapêutica.
Como aspetos mais negativos dos últimos anos, saliento a falta de tempo de que os clínicos dispõem para a investigação, sobrecarregados como estão de tarefas assistenciais e administrativas. Um outro aspeto negativo foi a constatação que alguns ensaios clínicos são por vezes interrompidos pelos promotores por razões de ordem puramente comercial (como por exemplo pela retirada dum determinado fármaco do mercado por razões económicas). Este facto deixa os investigadores dos ensaios (ou pelo menos a mim deixou-me) com sentimentos de alguma revolta uma vez que, quando aceitaram ser investigadores dum determinado ensaio, pretendiam colaborar numa investigação que pretendia dar resposta a uma questão pertinente do ponto de vista clínico e que, por razões meramente administrativas, fica assim por responder.
Como reage um doente quando lhe propõe fazer parte de um ensaio clínico e de que forma o motiva a participar?
Acho que não podemos simplificar em demasia esta resposta. Cada doente é um doente e os ensaios também não são todos iguais. Alguns ensaios em que participei exigiam do doente uma resposta imediata (em muito poucos minutos como no caso de ensaios com fibrinólise na fase aguda do enfarte do miocárdio por exemplo), enquanto que outros permitem que o doente tenha bastante mais tempo para ler todos os materiais do ensaio e para ponderar e colocar todas as questões. Por outro lado, é bastante mais fácil propor a um doente a sua participação num ensaio quando o doente já é seguido por nós há algum tempo e a relação médico-doente já é bastante sólida do que propor um ensaio a um doente que acabamos de conhecer.
A única atitude correta (aliás preconizada pelas Boas Práticas Clínicas) é explicar com detalhe o ensaio clínico ao doente e aos seus familiares, responder com total honestidade a todas as perguntas por eles colocadas e esperar que o doente queria colaborar no ensaio de sua livre e espontânea vontade.
Um doente de ensaio clínico é um doente diferente?
Sem nenhuma dúvida. Os critérios de inclusão e de exclusão adotados pela grande maioria dos ensaios levam a que os doentes que preenchem esses critérios são doentes muito selecionados e, frequentemente, bastantes diferentes dos doentes do chamado “mundo-real”, o que depois dificulta a extrapolação dos resultados dos ensaios para a abordagem dos doentes que vemos no dia a dia.
Por outro lado, alguns subgrupos são sistematicamente “deixados de fora” dos ensaios como é o caso por exemplo dos idosos ou dos insuficientes renais só para dar 2 exemplos muito frequentes, já para não falar de doentes mais desfavorecidos do ponto de vista socioeconómico.
Quais os principais problemas/dificuldades que podem dificultar a investigação clinica em Portugal? O que poderia ser feito para potenciar esta área?
Como já referi atrás, a falta de tempo para a investigação clínica é o principal factor limitativo que nos leva a ter menos ensaios clínicos em Portugal em relação aos que poderíamos ter. A atribuição do chamado “tempo protegido” aos profissionais de saúde envolvidos na investigação poderia colmatar esta dificuldade, mas todos entendemos que não é previsível que a tutela possa vir, num futuro próximo, a permitir ou a incentivar a criação desses períodos dentro do horário normal dos médicos e outros profissionais de saúde.
E o que se faz de melhor em Portugal nesta área e que poucos sabem?
Muitos centros de investigação clínica participam em múltiplos ensaios clínicos e com uma qualidade que seguramente estará acima da média de outros centros internacionais. Isso é aliás reconhecido pela grande maioria dos laboratórios promotores de ensaios. Quando um centro português participa num ensaio, geralmente cumpre o que lhe foi proposto na altura da abertura do centro e os registos efetuados são de muito elevada qualidade.
Isso mesmo pude testemunhar não só na minha área da Cardiologia, mas também noutras áreas da Medicina, aquando da minha passagem como vogal da Comissão Plenária da CEIC (Comissão de Ética para a Investigação Clínica).
O que poderia ser feito nesta área para desenvolver e aumentar o número de ensaios clínicos em Portugal?
Receio repetir-me ao dizer que atribuir tempo protegido aos investigadores poderia ser um enorme incentivo para que mais profissionais de saúde pudessem dedicar-se à investigação clínica. Isso implicaria uma maior acessibilidade dos interessados a formação de qualidade em Boas Práticas Clínicas.
Um outro aspeto que levaria mais médicos a fazer investigação clínica seria uma maior valorização desta atividade nos concursos para a progressão na carreira médica.
Quais os principais desafios que a área da investigação lhe coloca diariamente?
No meu contexto atual, uma vez mais, a falta de tempo para me dedicar mais à investigação. As atividades assistenciais, mas também as organizacionais e administrativas, ocupam hoje a quase totalidade do meu tempo profissional.
Qual a diferença entre fazer ensaios clínicos num Hospital privado e num Hospital público?
Encontro muito poucas diferenças. No hospital privado em que exerço a minha atividade existe uma Comissão de Ética, uma outra de Investigação e um Centro de Ensaios Clínicos que dão muito apoio aos investigadores. Os processos de aprovação são provavelmente bastante mais céleres do que na maioria dos hospitais públicos, o que leva a que sejamos, com alguma frequência, o primeiro centro português a recrutar doentes nos ensaios em que participamos.
Nos últimos anos a Novartis tem investido bastante em Investigação Clínica, nomeadamente em Portugal no aumento ao nível do número de ensaios quer de doentes incluídos nos mesmos. Tem essa perceção?
Tenho essa perceção sim. Como mencionei atrás, durante os anos de 2014 a 2017 integrei a Plenária da CEIC onde passavam todos os ensaios clínicos propostos para Portugal. Ali testemunhei o elevado e crescente número de ensaios propostos pela Novartis em várias áreas da Medicina.
Acha que os tempos de aprovação que temos em Portugal são competitivos?
Também na CEIC fui testemunha nos últimos anos duma franca redução nos tempos de aprovação de novos ensaios (naquela instituição, mas também nos conselhos de administração e omissões de ética locais). Poderíamos ter tempos ainda mais curtos? Provavelmente sim mas não me parece ser esse o principal factor limitante para o incremento de novos ensaios no nosso país.
Com alguma frequência, a abertura de ensaios em Portugal só é considerada pelos promotores quando os ensaios apresentam dificuldades de recrutamento a nível internacional, o que não é particularmente justo para os centros portugueses. Quando, pelo contrário, os centros nacionais são convidados ao mesmo tempo que os internacionais, o nosso desempenho é bastante bom e o “arranque” dos ensaios não difere muito dos centros de outros países.